segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Criador do Programa Cultura Viva revela os desafios dos pontos de cultura


Criado em Campinas, Célio Turino nasceu em Indaiatuba, SP. Graduado e mestre em  História pela Unicamp, é servidor público há mais de 20 anos. Quando esteve como secretário Municipal de Cultura de Campinas, entre 1990 e 1992, criou as bases do que se tornaria o Programa Cultura Viva. Foi também diretor do Departamento de Programas de Lazer na Secretaria de Esportes, na gestão Marta Suplicy.
O convite para integrar a então Secretaria de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura, em 2003, na época sob a gestão Gilberto Gil, foi para coordenar um outro projeto que o governo federal pretendia lançar para a construção de centros culturais em regiões periféricas. Reconhecendo as deficiências de iniciativas do tipo, Célio Turino propôs subverter um pouco a lógica do estado apenas como provedor. Turino escreveu o projeto Cultura Viva em duas noites, em um quarto de hotel.
De passagem por Santos no dia 29 de abril para o lançamento de seu livro Ponto de Cultura – O Brasil de Baixo para Cima, Célio Turino concedeu entrevista e contou a experiência de gestão do programa de empoderamento e protagonismo que se tornou modelo para todo o continente e sobre a estreita relação entre a cultura e a comunicação. “Colocamos os meios de produção nas mãos de quem produz cultura, com estúdio multimídia, câmera de vídeo e equipamento de gravação musical.
Só que, se ampliam os meios de produção, você precisa ter meios de difusão. A cultura é sempre viva e a comunicação é estratégica. Aliás, é um erro tratar a comunicação separada da cultura”, declarou Turino. Confira a entrevista na íntegra, na volta do MídiAtiva Santos.
MA – Os pontos de cultura já estão protegidos de qualquer tempestade governamental? Eles passaram a fase de ser uma política de governo e atingiram seu potencial de política pública de estado?
Célio Turino – É nescessário regar mais essa planta. Há um processo. Sem dúvida o ponto de cultura está bem distribuído pelo Brasil todo. São três mil pontos, mais de oito milhões de pessoas participando desse processo. Há uma solidez, mas pode retroceder. As medidas que nós tomamos no Ministério da Cultura para evitar isso foram, num primeiro momento, o próprio sentido do programa: o empoderamento e o protagonismo da sociedade.
Isso tem ocorrido. Há uma consciência da importância desse valor. E que valor é esse? É o entendimento da cultura enquanto processo e que quem faz cultura é a sociedade, não o governo, mas cabe ao estado garantir meios para que essa produção cultural seja feita de maneira diversa, autônoma e protagonista. Eu diria que o estágio, hoje, do ponto de cultura e do programa Cultura Viva é um estágio intermediário.
É uma política de governo que ganhou espaço na sociedade, ganhou representatividade, mas é preciso um amparo mais sólido, a partir de uma lei, por exemplo, que garanta esse conceito e princípios do programa. Esse é o grande desafio dos pontos de cultura. Eu deixei o Ministério em 31 de março depois de cinco anos e dez meses de trabalho, tendo sido responsável pela formulação e implantação do programa neste período todo.
Deixamos para um outro momento pois entendemos ser necessário levar essa discussão para um outro campo. Por isso, talvez eu me apresente nestas eleições como pré-candidato a deputado federal, para levar adiante essa bandeira.
MA – E quais são os outros desafios ainda não vencidos ou não enfrentados?
Turino – O grande desafio é que essa proposta é inovadora e rompe com a lógica do estado. O estado é concentrador e impositivo por excelência e os pontos de cultura pressupõe o descontrole, a desconcentraçã o, o estabelecimento de uma relação entre estado e sociedade que seja em outras bases, com novos paradigmas.
Por exemplo: do estado que desconfia e controla para um estado que confia. A confiança é uma relação de mão dupla. A sociedade participa. Muda em essência a democracia. Vivemos uma democracia que é transferidora de responsabilidades.
O ponto de cultura exige muito da sociedade, que ela se aproprie dos meios de gestão do estado, quando realiza um convênio, uma prestação de contas, esses mecanismos de acompanhamento. Mas no entendimento de prática cidadã, é um exercício necessário, que precisa ser colocado. Falando na condição de historiador, uma pessoa que estuda política pública, eu diria que o ponto de cultura é um passo além no orçamento participativo.
O orçamento participativo é um grande avanço que o país conquistou em algumas prefeituras, a partir da experiência de Porto Alegre, mas ainda assim tem limites. A sociedade é chamada a dizer o que precisa, o que quer. O ponto de cultura convida as pessoas a dizerem como querem fazer. Enquanto estudo de ciência política e filosófica acerca da gestão de relação entre estado e sociedade, o ponto de cultura pode ser observado neste sentido.
MA – Depois dos primeiros editais do Cultura Viva, o Ministério optou por editais temáticos com classificações específicas aos pontos. Vieram os pontões, os pontinhos. Essas classificações não atrapalham o processo? Quero dizer, quem é ponto não se entende menos do que o pontão?
Turino – O ponto de cultura tem a questão da brincadeira, do lúdico, muito forte. O pontão, pontinho, ponto, griô. Inventamos esses nomes com a perspectiva do lúdico. Areté, por exemplo, foi um edital para eventos. Era um edital para pequenos eventos. o nome era esse: Edital para Pequenos Eventos. Já estava correndo o edital, mas decidimos mudar.
A equipe pesquisou e encontrou essa expressão: Areté. Em tupi significa “dia festivo” e em grego significa excelência ou virtude. Olha que beleza! A mesma palavra com troncos linguisticos absolutamente separados. É uma ótima definição. Um dia festivo da excelência e da virtude. Nós buscamos, portanto, essa construção narrativa.
Agora, o importante é manter os pontos de cultura sem distinção de hierarquia. O pontão de cultura tem um papel de ser articulador, capacitador e difusor na rede. Aí ele pode ter um recurso maior e tem mais atribuições. Pode ser um pontão de teatro em comunidade, cultura e meio ambiente, recorte em genero, para povos indígenas (como o Índios Online ou Vídeo nas Aldeias). Mas o pontão não estabelece relação de subordinação com os pontos.
O que há de positivo nessa história é que o ponto de cultura estabelece uma quebra de hierarquias e estabelece novas legitimidades. Por que? Note para o detalhe: todos os pontos recebem o mesmo valor, sessenta mil reais, seja no interior do Ceará, na floresta amazônica, ou com um grupo de universidades, música colonial barroca ou com uma folia de reis.
É um pouco a ideia de estabelecer determinados padrões de igualdade, onde todos estão em uma mesma plataforma, sem distinção de hierarquias e culturas. A cultura é muito classificada, é muito adjetivada: cultura erudita, cultura popular, cultura de massa, cultura urbana, de rua. Na verdade, o que é praticado no ambiente dos três mil pontos de cultura é só cultura. Tudo está no mesmo campo.
MA – E os pontos de mídia livre. De onde parte essa demanda?
Turino – Já lançamos uma segunda edição. Eu avalio que o ponto de mídia livre pode apresentar um bom caminho de como as políticas públicas podem tratar a comunicação. Aí ele deveria ser interpretado como uma categoria para além do ponto de cultura. Os pontos pressupõe uma produção sedimentada em grupos e localidades.
Colocamos os meios de produção nas mãos de quem produz cultura, com estúdio multimídia, câmera de vídeo e equipamento de gravação musical. Só que se amplia os meios de produção, você precisa ter meios de difusão. A cultura é sempre viva e a comunicação é estratégica. Aliás, é um erro tratar a comunicação separada da cultura.
A comunicação só existe porque ela transmite alguma cultura, qualquer que seja. E a cultura só existe porque é reproduzida e comunicada. O correto seria estarem em um ministério só no governo federal. Hoje se trata a comunicação de outra forma, como meio e técnica. Comunicação é um direito humano básico. Uma das definições sobre os seres humanos é que o homem é um animal que produz expressão simbólica, produz símbolos.
O que é isso? Só se produz símbolos se há comunicação. Não há como separar da cultura. Ao separar, a comunicação fica aprisionada pelos meios econômicos e de poder. Fica subordinada à essa ideia de informação como mercadoria. Aliás, eu também aprendi a não chamar de grande mídia essa mídia estabelecida. Eu chamo de mídia mercadoria.
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E a mídia livre é uma possibilidade de mediação e comunicação da sociedade, livre de amarras, que promove esse processo de encontros e interpretações. Esse é o papel de uma mídia efetivamente livre, indispensável para a democracia, para a própria radicalização da democracia. Não podemos entender a democracia como um dado único e acabado.
Tem sentidos diversos, é uma construção histórica. Se nós, enquanto sociedade, que pensamos no aprofundamento democrático de mudança no processo de relação entre e estado e sociedade, não discutirmos isso em profundidade, não vamos chegar a lugar algum. Então, em primeiro lugar, era necessário promover o reencontro entre cultura e comunicação.
A política deveria ter um sentido único. Note que isso não ocorreu. Eu diria que uma das grandes contradições visíveis do governo do presidente Lula é a política cultural que foi em um caminho e a política do Ministério das Comunicações, que foi para outro. Chegaram acontecer situações como a história de um ponto de cultura na favela de Heliópolis, em São Paulo, que tinha como base de suas ações uma rádio comunitária.
Eles renovaram todo o equipamento da rádio que estava no ar, sem concessão pública. E tempos depois a rádio foi fechada pelo próprio governo. Depois chegamos a bom termos e a rádio de Heliópolis está muito bem. Mas até o jornal O Estado de S.Paulo apontou a contradição. Foi a única vez que ganhamos um editorial nesta mídia mercadoria.
Evidentemente, condenaram o fato do Ministério da Cultura ter financiado uma rádio que ainda não tinha concessão. Mas eles não falam que a rádio comunitária teve um papel fundamental na recuperação urbana na maior favela de São Paulo, na redução da violência, na pacificação de um ambiente bastante degradado. Eles não falam isso.
MA – E de que forma você pensa que essas políticas de comunicação livre poderiam avançar?
Turino – Eu não participei da Conferência de Comunicação, mas acompanhei com muita atenção. Não só na condição de secretário da Cidadania Cultural do MinC, mas também de alguém que pensa gestão pública e políticas públicas.
Penso que o caminho para fomentar uma mídia livre e democrática, que fosse realmente efeciente, não é da disputa das verbas publicitárias. Nós deveríamos conseguir junto a todo esse campo do midialivrismo, essas mídias alternativas, sites comunitários, a voz do próprio protagonista, deveriam trabalhar para inserir a mídia livre enquanto um direito inalienável, direito humano básico, que é feito pela sociedade, sem controle, mas cabe ao estado garantir mecanismos de seu funcionamento.
Eu gosto de trabalhar com algumas equações matemáticas. O próprio ponto de cultura tem muito de matemática, mas isso fica para uma outra entrevista. Fazendo umas continhas e observando algumas lógicas de aplicação de recursos, eu vi que o edital de mídia livre do programa cultura viva aponta um outro caminho.
São prêmios que rádios comunitárias, blogs ou TVs recebem para aplicar na ação deles sem que haja qualquer necessidade de contrapartida ou subordinação. Com a publicidade não funciona assim. Investimos pouco. Foram quatro milhões em cada edição do prêmio.
Mas por que não pensar em garantir uma lei da mídia livre, garantir que vinte porcento da publicidade oficial fosse destinada ao financiamento de uma mídia de caráter comunitária, não vinculado a corporações econômicas e que fossem selecionados por editais. Com isso conseguiríamos algumas centenas de milhões de reais. Um outro caminho, que ninguém olhou esse campo e que é um meio de cooptação da imprensa escrita, são os editais.
Há a obrigatoriedade da publicação de editais em jornais e este é um forte subsídio público a essa imprensa. Tanto que percebi isso quando fomos lançar um edital para a contratação de um consultor por um organismo internacional como o PNUD. Às vezes um anúncio equivalia a um terço ou mais do valor do contrato. Isso porque se inventou uma tabela fictícia para os governos publicarem editais.
O preço é três, quatro, cinco vezes maior do que o preço de mercado. E isso hoje é absolutamente desnecessário. Poderíamos, por exemplo, criar um portal público na internet para esses editais. Se transpusermos essa lei da mídia livre para as prefeituras, podemos avançar ainda mais. A sobrevivência dos pequenos jornais é se vender para o governo de plantão.
É a primeira vez que passo a ideia desse jeito. Não tínhamos o dinheiro para fazer algo desse tamanho. Mas conseguimos junto ao Fórum de Mídia Livre desenvolver essa proposta e temos obtidos excelentes resultados. Na Conferência de Comunicação, o debate sobre o controle social tomou muito espaço. Eu prefiro o caminho do descontrole, uma outra relação que possa chegar ao equilíbrio.
É a mesma ideia do ponto de cultura. Buscamos zonas libertadas da produção cultural. Precisamos dessas zonas libertadas também na comunicação. Para o processo de revolução social, essa é uma guerrilha simbólica que está sendo travada. Ela é essencial. Talvez seja chave.turino04
O centro da luta de classes (que está fora de moda, mas enquanto existir rico, pobre e exploração, existirá luta de classes) se deslocou de dentro da fábrica para o controle da narrativa. A sociedade contemporânea impede a realização da narrativa. Na sociedade da informação, com a internet, esse impedimento é maior ainda.
Um monte de informação não significa que há processamento. Narrativa significa conseguir olhar para o passado, a história, as raízes e projetar o futuro. É conseguir fazer um desenho no ar e criar um roteiro de vida, individual, de grupo e de sociedade. Se olharmos o sistema de controle econômico e político, ele impede essa narrativa.
MA – Mas isso está em transformação? A política caminha para um processo mais dialógico ou ainda estamos distantes deste cenário?
Turino – Eu diria que temos avançado. Posso ser suspeito por ser o cara que pensou o ponto de cultura e regou cada um com muita atenção, mas dizendo como alguém que pensa o assunto, eu diria que sim. Encontramos resposta em muitos cantos da sociedade.
O que eu viajei por aí e ouvi que os pontos eram o que sempre precisamos. Não estávamos conectados. Num dado de circunstância, termos um presidente como o Lula e um ministro como o Gil abriu uma fresta que foi por onde eu entrei, ao lado de tantos outros. Todo dia eu pensei em botar a minha cunha ali e abrir mais essa fenda.
Mas essa fenda precisa ainda ser escancarada. O estado tem que ter um outro padrão. Precisamos de mudanças de paradigma. É questão de salto civilizatório. O Brasil e o mundo estão em uma encruzilhada. Esse modelo não cabe mais. Tem muita coisa errada ainda.
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